quarta-feira, 28 de maio de 2014

Tortura nunca mais

Eu tinha minhas desconfianças, mas só para confirmá-las, fui pesquisar na internet e não deu outra: quem inventou a mamografia foi um homem. Um médico alemão chamado Albert Salomón, o que poderia inspirar muitas mulheres a tachá-lo logo de “nazista sem mãe”. Essa, porém, seria uma atitude um tanto xenofóbica, preconceituosa e, para ser sincera, injusta. Sim, porque esse homem, que morreu em 1911, inovou com a radiografia mamária, mas não inventou aquela máquina de tortura a que somos submetidas hoje. Os verdadeiros culpados, nesse caso, são os franceses, que fabricaram a tal Senographe, que devia se chamar Senopurée, já que faz, literalmente, um purê de nossos pobres seios.
Enquanto os médicos e pesquisadores do mundo todo se debatem contra ou a favor da mamografia, mulheres comuns são levadas a crer que se não se submeterem anualmente ao supremo sacrifício da tortura, serão castigadas com um câncer de mama letal. Então eu, mulher comum - encaminhada pela ginecologista para a sessão de sofrimento, como punição por ousar atingir a faixa etária de risco - me aventurei.
Cheguei com 15 minutos de antecedência, conforme pedido pela clínica. Na sala de espera, onde fiquei por meia hora antes de ser chamada, a televisão ligada no noticiário da manhã não abafava os gritos esporádicos que vinham da sala de exame. A tensão era palpável. E eu era a próxima. Quando a atendente chamou meu nome, tive que reprimir um impulso de fugir correndo. Forcei um sorriso e a segui.
Quem nunca esteve numa sala dessas não sabe o que é a pressão psicológica. Na penumbra, desenha-se o equipamento, que lembra uma máquina de passar roupas de lavanderia, com a prancha pequena, toda ligada a computadores. Nas paredes, placas advertem sobre o perigo da radiação para acompanhantes e técnicos. Num banheirinho, você é convidada ao topless, e então, começa o pior.
As instruções da técnica fariam Einstein se sentir um estúpido: “Coloque o peito aqui, levante o quadril, abaixe o ombro, vire o rosto para cima e para o lado, segure a outra mama”... O quê? Ninguém absorve isso tudo de primeira. É como quando a gente pergunta numa lanchonete por um suco: “tem de quê?”, e o cara fala em sequência, sem respirar, os 58 sabores disponíveis. Dá um branco na hora, você fala rápido o nome da primeira fruta que vem na cabeça – laranja! - só pra se livrar daquele olhar “e aí, escolheu?”.
Fiquei com ar abobado, olhando para mulher. Ela então, com ar resignado, começou a “montar” a pose em mim como se fosse num daqueles bonequinhos articulados que servem de modelo para desenhistas. Empurrou meu tórax contra a prancha de passar, que de perto começava a se parecer com uma sanduicheira, esperava que eu mantivesse apenas um seio ali e puxasse o outro para fora. Minha cara foi pressionada contra uma chapa de metal e o ombro do lado a ser examinado foi empurrado para baixo. Monte aí na sua cabeça essa cena. É humilhante. Acrescente um “agora levante o bumbum” e saiba o que é degradação.
Vencido o desafio do posicionamento “técnico”, fomos ao exame em si. Vestida com seu avental de chumbo, a moça vai para o sombrio lado de trás da máquina e, sem aviso, aperta um botão que faz descer a parte de cima da sanduicheira sobre o meu seio e... dor. Muita e profunda - dor.
 Impossível não gritar. A pressão demorou intermináveis segundos, durante os quais desfilaram pela minha mente cenas de filmes sobre os porões da ditadura e torturas medievais. A reação instintiva foi puxar o seio para fora da máquina, o que provocou ainda mais dor, inclusive nos músculos peitorais e – o mais terrível – fez com que a tomada tivesse que ser repetida. Lágrimas saltaram dos meus olhos. “Está bem, eu confesso qualquer coisa, pare pelo amor de Deus”.
Depois de seis sessões de esmagamento como essa, eu estava em frangalhos, chorando feito um bebê e com muita dor. E a técnica dizendo: “eu sei que dói, mas é para o seu bem”, soava como se um psicopata do seriado Criminal Minds estivesse me consolando após ter arrancado minhas unhas com um alicate.
No final, eu chorando - como quem está jogada na sarjeta, violentada e sangrando, aos pés do seu algoz - recebi com ódio a sua irônica recomendação: “tome um analgésico que vai melhorar”. Eu queria vê-la morta. Queria colocar a cabeça dela na máquina e apertar até explodir. Queria esmagar pessoalmente os testículos de todos os homens envolvidos no projeto daquela máquina. Queria vingança...!
Recuperei aos poucos a sanidade e dignidade. Vesti-me, e sai – por uma porta diferente, que impede as próximas vítimas de verem o estado das suas antecessoras. Não sou manhosa, eu enfrentei com bravura dois partos e uma de apendicite, extrai alguns dentes. Mas mamografia, para mim, já deu. Tortura nunca mais.

   
Sim, eu fiz minha mamografia hoje... por que pergunta?
(imagem retirada do site http://www.teamtowanda.org/jokes.html - autoria desconhecida)

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Dia do Índio:

Homenagem aos milhares que foram mortos, aqui e além, porque eram diferentes.

Aos massacrados por pintarem o rosto e os cabelos, embora vivendo sem máscaras.

Aos escravizados por serem dóceis e inocentes, apesar de corajosos.

Aos seviciados por serem puros - ainda que seminus.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Ano bom

Há anos que são de sorrir. Começam numa festa de ano-novo alegre e vão carregando o riso pelos dias a fora. Nosso espírito entra fevereiro fantasiado de palhaço e sai na páscoa com orelhas de coelho e a boca suja de chocolate, pensando em renovação. Lavamos a alma nas chuvas de verão e guardamos o aconchego do outono para nossas reflexões sobre as coisas boas que vivemos e para a gratidão. Nesses anos, nem mesmo agosto, injustamente tachado de agourento, consegue abafar os risos que ainda ecoam pelas semanas e tornam-se mais fortes aos domingos de manhã, com as crianças pulando na cama logo cedo, ou em barulhentos almoços de família. Com setembro, nesses anos, chega a primavera e as cores ainda mais brilhantes da alegria, os feriados são festas e os planos para o Natal já estão se insinuando... há anos assim. Eles existem para nos dar descanso, uma trégua nas tristezas e nas certezas - tão cruéis - contidas no simples fato de vivermos num mundo onde o amor é pouco para tantos corações partidos.
O ano de 2010 foi assim. Para mim.
Que 2011 seja um ano desses também, às vezes eles se sucedem por um tempo. As vezes só trocam de vidas. Se não for para mim, que seja para você, ou para alguém que necessite dessa trégua mais do que nós.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Dezembro outra vez!

Eu fico impressionada com a rapidez com que dezembro chega. Um dia estamos comendo ovos de páscoa, no outro já estamos armando a árvore de Natal. Cada ano que passa, esse processo parece mais acelerado. Muita gente que eu conheço sente a mesma coisa, e algumas dessas pessoas têm até explicações, mas eu não acho que nenhuma seja convincente.
Vejamos, as possibilidades...
Teoria número 1 - "O tempo passa rápido porque estamos felizes" - no meu caso não se aplica porque a minha infância foi o tempo mais feliz da minha vida e eu me lembro que, naquela época, o Natal demorava uma era para chegar.
Teoria número 2 - "Temos muito mais coisas para fazer e os dias parecem menores" - também não aceito, porque quanto eu tinha 19 anos eu fazia duas faculdades, dava aulas de inglês e namorava. Nunca tive tanta coisa para fazer, no entanto, os meses eram bem marcados e o Natal demorava pelo menos o tempo da poeira juntar nos enfeites encaixotados.
Teoria 3 - "Com a idade, nos acostumamos às coisas e elas deixam de ser percebidas alterando a nossa percepção do tempo" - essa é científica, mas eu não acho que me acostumei tanto assim com a minha vidinha sempre, a ponto de não "ver" o tempo passar.
Há outras teorias, fiquem à vontade para deixar a sua nos comentários, mas a verdade é que parece que reprogramaram todos os relógios enquanto estávamos dormindo, e afinal, um minuto não tem mais 60 segundos e, um segundo, agora tem só 8 décimos... essa minha teoria é meio conspiratória, mas a julgar pelos anúncios na tevê, oferecendo promoções de Natal, quando ontem mesmo ofereciam presentes para as mães, ela é bem provável.
Não acreditam? Então tá. Bom carnaval para todos!

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Feliz Dia dos Finados

Novembro começa com esse feriado, no dia 2. Alguns chamam de "Dia de Todos os Santos" outros simplesmente de "Dia dos Finados", acho a segunda opção mais democrática, já que estende a "homenagem" aos nem tão santos assim. Mas, quando criança, sempre me perguntei porque será que os mortos precisariam de um dia para eles. Afinal, morreram, e certamente não precisam mais de coisa nenhuma.
Hoje eu analiso que talvez esse dia não seja, na verdade, para os mortos. É um dia, isso sim, para os vivos. Um dia para os vivos lembrarem dos que se foram, e sobretudo, lembrarem que também irão, algum dia. É uma data de reflexão, não sobre a morte, mas sobre a vida como coisa finita, de duração indeterminada.
Quem não se limite a levar flores aos túmulos de parentes e amigos nos cemitérios, acender velas e chorar, pode sair desse feriado um pouco melhor. Mais consciente de sua condição perecível, mais acordado para a urgência do tempo.
Ninguém quer morrer sem ter amado o bastante, sem ter rido bastante, sem ter visto tudo o que há de interessante à sua volta. Ninguém quer morrer sem ter dado ou recebido o perdão redentor, o abraço confortante, o beijo apaixonado. Então é tempo de correr. Ninguém sabe o dia de amanhã, já dizia a avó da minha avó. Procure aí, e ache alguém vivo que mereça uma visita, um telefonema ou um sorriso hoje. Antes que seja tarde. Feliz Dia dos Finados!

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Não esquenta a cabeça

Sempre que ouço falar de otimismo, logo me vem à mente a imagem do meu marido, Juan. Nunca conheci e acho que está para nascer alguém mais otimista e confiante que ele. As frases que não saem dos seus lábios são "tudo vai dar certo" e "não esquenta a cabeça".
Bateu com o carro sem seguro? "Não esquenta, a gente dá um jeito".
Não sobrou dinheiro para as compras? "Não esquenta a cabeça, a gente come qualquer coisa". Enfim, não tem problema pelo qual valha a pena preocupar-se, nem situação que não vá acabar bem.
Viver com alguém assim é maravilhoso. Dá segurança, a gente se sente apoiada, como se por um toque de mágica, os problemas fossem reduzidos a coisinhas insignificantes, sem poder de abalar a nossa tranquilidade.
Um dia cheguei em casa e disse: "Juan pedi demissão do jornal". Falei com voz vacilante, porque a notícia significava que nosso orçamento ia sofrer uma redução de de 60%. Aí ele me perguntou: "Era o que você queria fazer?" e eu: "Era." e ele: "Então não esquenta a cabeça, vai dar tudo certo". Assim, sem discussão, sem cobrança, sem "o que será de nós?" ou "o que você fazer agora?". Só apoio, amor e otimismo, muito otimismo.
Para cada apreensão eu conto com um "não esquenta" que, longe de ser irresponsável, se traduz em "não se preocupe, as coisas se arranjarão de alguma forma e não importa o quanto você sofreu ou não, então não sofra. Vamos ver o que se pode fazer."
Nesses anos de convivência com o Juan construi uma teoria de que otimismo e confiança atraem coisas boas para nós. Ele diz que tudo vai dar certo e tudo acaba dando certo mesmo. Eu queria ser como ele. Muitas vezes nosso Pai Celestial nos fala, através da Biblia, que devemos crer e confiar e não nos ocuparmos do dia de amanhã. Mas poucos de nós conseguimos, vivemos na angústia do porvir, como se de nós apenas dependessem todos os acontecimentos futuros. Só que as coisas fogem do nosso controle e o futuro imaginado muitas vezes nunca se concretiza. Nesses momentos é que somos testados em nossa resignação.
Se chorar, arrancar os cabelos e perder noites de sono não resolvem coisa alguma, melhor mesmo é não esquentar a cabeça. Esperar, e descobrir como o tempo e a Providência resolvem o caso.
Eu ainda não consegui ser como o Juan. Mas cada dia vou praticando, eu chego lá, eu sinto.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Setembro, mães, aniversários e outras bobagens

Toda fez que chega setembro, para mim chega a estação dos aniversários. Minha mãe faz anos em setembro, minha filha mais velha, também. E, entre familiares e amigos, tenho pelo menos uns 20 parabéns para dar nesse mês.
Setembro é muito ameno, nem quente nem frio, sempre claro e muito agradável, anunciando a entrada da primavera. Em setembro ninguém está correndo para compras daquelas datas comerciais. Não é Dia das Mães (só da minha), não é Dia das Crianças, nada. Tem feriado da Pátria, no qual todos descansamos em berço esplêndido e este ano ainda vai ser prolongado, graças ao enforcamento de uma inocente segunda-feira.
Mas eu dizia que setembro é mês dos aniversários. Dos telefonemas e dos carinhos para amigos e parentes que atravessam mais uma etapa de vida. Eu sempre sinto uma coisa estranha em setembro, porque no começo do mês eu sou uma filha, presenteando a mãe e, no fim do mês, sou uma mãe, presenteando a filha.
É bem fácil agradar mamãe. Primeiro porque ela parece sempre muito feliz que eu simplesmente tenha lembrado do seu aniversário. Depois, porque eu acredito saber o que a faz feliz - flores e agradinhos culinários são de praxe. Também pode ser uma roupa, mas nunca verde, nem muito decotada. Mamãe não tem mistérios. Pelo menos, eu acho. Mas seu aniversário sempre me faz refletir, sobre quantos desses aniversários já passamos juntas e o medo, terrível, de que haja poucos mais para vivermos. O medo de que o mês de setembro possa ser um mês triste no calendário um dia, onde vá faltar um parabéns para dar.
Quando chega o fim do mês, no entanto, minha mais velha faz anos e as coisas são muito diferentes. Todas as certezas desaparecem, porque nunca sei como agradá-la plenamente, já que seus desejos e suas paixões mudam com frequência. O bolinho com a família pode facilmente ser rejeitado por um passeio ao shopping "com a galera", mas se não o providenciamos, ela é que se sentirá rejeitada... enfim jovens são mesmo seres em mutação, imprevisíveis - muitas vezes até para as mães.
Toda vez que é aniversário da minha filha eu me sinto um pouco perdida, não só porque não sei bem o que fazer para homenageá-la, mas principalmente por causa daquela sensação de também a estar perdendo. Onde está aquele bebê a quem eu trouxe ao mundo 18 anos atrás? Onde estão as fraldas, mamadeiras e brinquedos que me decoravam todo o apartamento? Até daquele sorriso com janelinha, do pingo de gente semi-alfabetizado que me afirmava saber "tudo", me dá saudade demais. Vê-la sair de mãos dadas com o namorado, dando um aceno curto para trás, e voltando a rir alto de alguma piada particular, me deixa parada na varanda de nossa casa, sem coragem de voltar aos restos de bolo e refrigerante, no meio dos quais jazem as velas apagadas pelo "meu bebê". Mesmo tendo outra criança agora, ostentando janelinhas lindas entre bochechas rosadas, ainda assim, também queria ter de volta a minha garotinha de setembro...