Mirante da Ilha - Coluna Ponto Final - Textos publicados no ano de 2003

O bêbado e a motorista

Existem duas coisas muito chatas na vida que, nesse particular, são unanimidade pública: trocar pneu e aturar bêbado. Como desgraça pouca é bobagem, noite dessas eu consegui unir essas duas infelicidades num mesmo momento, a ser vivido por mim e uma fiel companheira que é testemunha do inusitado fato.
Saíamos do trabalho tarde da noite, depois de um serão forçado, fomos apanhar meu carro. Entramos, dei a partida e rodei uns metros até me dar conta do primeiro infortúnio: um pneu dianteiro vazio. Com determinação típica de feminista dos anos 30, comecei o processo de troca do pneu, sem esperar por ajuda àquela hora avançada.
Já com o estepe no chão e o carro sendo erguido no macaco, escuto o barulho, inconfundível, de um motor de fusca se aproximando. Nos dias de hoje, a primeira emoção num caso desses é sempre o medo. Gelei, temendo um assalto ou coisa pior. Era coisa pior. Pelo menos do ponto de vista dos aborrecimentos gerados.
Dinheiro é artigo raro em minha bolsa, meu celular é de modelo ultrapassado, sem "wap", brilhos azuis, nem nada. O carro, com pneus cheios já não vale muito, nas condições em que estava, menos ainda. Se o assaltante não fosse um malvado cruel, nem se zangasse por não termos nada, um assalto poderia ser bem menos desgastante do que o aquilo que enfrentamos por quase uma hora.
O motorista do fusca parou adiante, saiu do carro e veio literalmente cambaleando em nossa direção, com o dedo em riste e gritando:
-- Vocês "qué" ajuda? Deixa que troco esse pneu! Eu troco! Pode deixar. Mulher, "grunf", eu troco. Mulher não presta. Mas eu troco. Não quero dinheiro, não quero nada, mulher não presta, mas eu troco, porque eu sou bom, tenho coração, sou uma besta, mas eu troco...
-- Não preci... - tentei evitar o pior, mas ele se exaltou:
-- Qué ajuda ou não qué? Não sou ladrão, num quero nada de vocês! Qué sim!! Chega prá lá, sai daí, tá tudo errado, tem que subir mais esse macaco, cadê a chave de roda? Isso é a sua chave? Mulher! Não serve pra nada..."grunf"
O bêbado estava ficando furioso. Eu resolvi deixar ele fazer o que quisesse com o pneu. Com bêbado não se brinca. São inflamáveis (com trocadilho, por favor). Ele xingou o carro, bateu, esperneou, mas não concordou em desistir e me deixar fazer o serviço que, sem a sua "ajuda", já estaria pronto há muito tempo.
Querendo ser amigável, perguntei-lhe o nome. Ele se irritou:" está querendo saber demais". Parei com as perguntas. Contraiando a expectativa, porém, ele resolveu, de repente, falar e eu me arrependi. Disse-me seu nome, seu endereço, há quanto tempo morava na Ilha, contou seus desafetos amorosos, o ódio/amor da mulher, a falta de beijos e carícias do seu casamento...enfim, um porre completo, na fria madrugada.
O auge do problema foi o encaixe do estepe na roda. Ele não conseguia encaixar os furos e, para piorar, desalinhou os furos do cubo da roda com os do disco de freio e não me deixava explicar o que estava acontecendo, muito menos ajudá-lo.
-- Fica quieta. Vai deixar eu fazer? Vai deixar? Eu tomei todas, tô doidão! Chega pra lá. esse pneu é do seu carro? Esses parafusos tão quebrados. Não são esses parafusos. Os buracos encolheram...-- e tome pancada do pneu contra a roda.
Quando ele parecia derrotado, numa pausa de sua fúria etílica, resolvi pedir, humildemente, que ele me deixasse pisar no freio para alinhar os furos. Ele não entendia porque, mas resolveu conceder: "pisa onde quiser, vai lá". Pisei e mandei-o tentar o encaixe novamente. Na terceira vez, entrou o primeiro parafuso. "Deus seja louvado! -- pensei.
-- Aí, tá colocado -- disse ele ao apertar o segundo parafuso da roda e jogar a chave no chão com estrondo. "Agora vou embora. Mulher, grunf, eu sou bom. Não quero nada! tchau!"
Enquanto acabava o serviço, encaixava a calota e guardava os apetrechos, só dizia para minha amiga, que me consolava: "eu mereço".
O bêbado cavalheiro tem razão. Ser mulher é uma droga. Nem trocar um pneu em paz a gente pode.



Não é fácil fazer boicote

Naqueles dias de guerra dos Estados Unidos contra o Iraque, uma amiga minha resolveu fazer um boicote aos produtos e à cultura norte-americana como forma de protesto. Ela bem que tentou me convencer a entrar na dela, mas eu não gosto de radicais...nem livres, nem presos, nem protestantes. Além do mais, eu já não sou mesmo fã de "qualquer coisa-cola", quem me conhece sabe que desde pequena sempre preferi o guaraná, nacionalíssimo e muito mais gostoso. E só para abrir um parêntese, nunca ouvi dizer que se limpasse mármores, nem desentupisse pias com esse simpático refrigerante, o que me deixa bem mais tranqüila.
Mas minha amiga encarou a sério sua missão e cortou do itinerário os fast-food americanos, não comprou mais discos "das bandas de lá" e evitou, por meses a fio, a combinação azul/vermelho/branco em suas roupas, mesmo sob pena de deixar de lado suas camisetas da União da Ilha.
Antes que ela tirasse os filhos do curso de línguas, o marido, mais sensato, convenceu-a que as crianças precisavam estar preparadas para conhecer o inimigo, entender a língua para sua própria proteção, caso o impeliarismo americano dominasse, um dia, o mundo e nossas mentes.
Eu, como sempre achei que isso não só já aconteceu, como é notícia velha, continuei minha vidinha normal, assistindo de longe os percalços pelos quais passava minha amiga para se livrar de ancestrais hábitos americanizados imbutidos em si mesma e nos filhos.
A pobre quase não ia mais ao cinema, pois filmes nacionais são poucos e os estrangeiros não-americanos, são em geral "non sense" para nós, latinos. A alimentação melhorou, sem dúvida, mas as crianças estavam com os nervos à flor da pele e brigavam por qualquer coisa com a mãe boicotadora. Por conta da "desintoxicação" do vestuário, os jovenzinhos perderam várias camisetas com frases duvidosas em inglês sofrível, compradas nos shoppings (outro americanismo detestável) e também um boné dos "Bulls", camisolas e outras peças com personagens da turma do Mickey e uma série de calças "jeans". Os tênis importados foram para o fundo do armário e no lugar dos chilenos "rider" (que aliás são feitos no Brasil) entraram sandálias havaianas, as legítimas. Bem que quis argumentar que o Havaí... bem, vocês sabem...mas acabei deixando para lá, com medo que as crianças acabassem descalças.
Claro que o boicote durou pouco. Nem bem as tropas americanas começaram a retirada, palavras como "self-service" e "download" deixaram de ser malditas. O mastercard e o american express foram logo reabilitados e ninguém mais reclamou. É, fazer boicote é difícil mesmo, ainda mais por um tempo longo. Dominío por domínio, quem é que liga se quem manda fala inglês ou alemão? O negócio é ser feliz. Believe it or not.

Ruralidades urbanas

Toda vez que uma galinha da vizinha passa para o meu quintal eu fico pensando como é que essa mulher consegue preservar esse ar de sítio na sua casa, esse pedacinho de ontem, essa quadra de nostalgia. Numa rua onde piscinas e churrasqueiras ocupam quase todos os quintais, é interessante constatar a opção da dona "Cotinha", de manter, além de frondosas árvores frutíferas (que bondosamente despejam mangas, cajás e abacates também para o meu lado do muro), o que ela chama de "criação", que é o conjunto de patos, galinhas e gansos que ela cria sob as árvores.
No meio das galinhas há, naturalmente, um galo. Um bicho meio doido que canta a qualquer hora da noite anunciando um ainda distante raiar do dia. Talvez ele esteja desregulado por causa dos tempos modernos, por esse incongruente desacerto entre a ruralidade do quintal da Cotinha (na verdade o nome dela é Coutinha) e a urbanidade do resto do bairro. Com tanta luz artificial nos postes, nos quintais vizinhos; com tantos ruídos perturbando a noite, qualquer galo desavisado pode se enganar.
Ultimamente as galinhas andam agitadas, vira e mexe uma delas aterrissa entre as minhas plantas. Vez por outra meu vira-lata de raça está solto e não perde a chance de mostrar suas habilidades de caça. É um Deus nos acuda. Já salvei uma pretinha duas vezes, com prejuízo de algumas penas, de virar almoço de festa do Suez. Meu outro cachorro, um labrador, está sempre solto, mas não ameaça muito a integridade delas, ele late, às vezes as encurrala para que a gente possa apanhá-las, mas olha o pobre bicho fugitivo com profundo desprezo: "galinhas, bah!".
Realmente é incrível que, tendo quase sido morta, a pretinha volte. Se não for por puro acidente, quem sabe seja por aquela característica tão humana de apreciar o "gostinho do perigo", de dar emoção à vida. Uma coisa é certa: Quando ela passa para o nosso quintal, ela nos traz um pouco do bucolismo perdido da infância, me recorda as manhãs alimentando as galinhas do galinheiro da minha casa, os pintinhos novos em carreira atrás de gordas aves orgulhosas e cacarejantes.
As fugas da pretinha me fazem lembrar quem somos e de onde viemos, me humaniza. Graças à dona Cotinha, eu posso mostrar à minha filha como são as galinhas antes de irem para os sacos plásticos ou para os grills das padarias. Abençoada seja. Abençoada a sua criação, inclusive o galo doido das madrugadas.


Procrastinação


A palavra é estranha, mas o seu significado é bem comum para a maioria de nós. Em palavras simples, procrastinar significa contrariar o velho ditado popular que nos aconselha a nunca deixar para amanhã o que podemos fazer hoje. É não só deixar para amanhã como deixar para a última hora, o instante final, uma tarefa que poderíamos perfeitamente ter adiantado.
Mas porque fazemos isso? Há vários motivos e o mais comum é a preguiça.
Depois, há também a definição distorcida de prioridades e a falta de motivação para realizar a tarefa em questão.
A empregada da minha vizinha sempre deixava para a hora derradeira do dia a tarefa ingrata de lavar os banheiros. Dá para compreender, falta motivação. Também não há nenhum entusiasmo que brote da obrigação de pagar contas, por isso, elas são pagas sempre no último dia, poucos minutos antes do banco fechar, por grande parte dos devedores. É ou não é?
Dia da Mães, Dia da Criança, Natal. Já ouviu falar de gente comprando presentes com antecedência? Raridade. Quem faz isso pode até ser taxado de neurótico. O normal é deixar para comprar na véspera, e se acotovelar com outras centenas de procrastinadores que estarão disputando os últimos produtos das prateleiras.
Eu mesma, tenho que admitir, sou uma dessas pessoas. Sempre deixo para escrever aquelas matérias que vão dar trabalho, que exigem muitas entrevistas e alguma pesquisa para escrever no apagar das luzes. Não é um caso, aí, de falta de motivação. É preguiça mesmo.
Pressão é um elemento chave para impulsionar um procastinador a se livrar logo de uma tarefa que venha arrastando. Ele tem que ser privado de alguma coisa, correr algum risco, para estabelecer logo uma prioridade, como escrever um relatório ou marcar o dentista. O chefe tem que ameaçar tirar a folga do fim-de-semana ou o dente tem que começar a doer, a namorada se queixar do mau-hálito.
Essa crônica de hoje, por exemplo. Eu deixei para a última hora. Não pensei num assunto antes, não aproveitei para escrever quando me senti inspirada e agora, bem, só me restou empurrar em vocês, meus inocentes leitores, esse tratado sobre o "depois eu faço". Semana que vem será diferente. Só não vou fazer a próxima hoje, para adiantar, porque estou muito cansada. Mas segunda-feira eu faço. Sem falta. Pode deixar. Senão, o mais tardar na terça. Com certeza. A menos que aconteça alguma coisa que impeça...


Sinais


O carro quente, sol a pino. No trânsito agitado da hora do almoço, vou pensando no dinheiro que preciso ganhar para adaptar um ar condicionado no Gol 87. O anda-pára da avenida enerva os motoristas que disputam agressivamente cada centímetro de espaço no asfalto escaldante.
O sinal fecha. Ah, os sinais – deve ser por causa deles que se diz que o inferno é vermelho. O suor escorre pela minha nuca e tento pensar em outra coisa. Mais um verão está chegando e, se faz calor assim em setembro, nem quero imaginar como será dezembro este ano.
Pela janela aberta entra uma baforada de vento quente. Quando me viro, um jovem alto passa e me joga no colo dois ou três folhetos de propaganda. Lixo, mais lixo para o meu já imundo carro.
Preciso achar tempo para dar uma limpeza nele.
Um menino que mal alcança a janela do carro me fala com voz tímida.
- O quê? – pergunto.
- Me dá uma moedinha?
- Não tenho.
Antes mesmo de ouvir a frase toda ele já está passando ao carro de trás. Olho pelo retrovisor, meio arrependida de não procurar na bolsa uma moeda para ele. Mas estou com pressa. E o sinal não abre. E o calor não passa.
Olho ao redor. De repente me lembrei do grupo de meninos malabaristas que estava neste sinal ontem. Nem sinal deles hoje. O que ficou em frente ao meu carro não devia tem mais que 6 anos. Comandava três limôes grandes, com olhos atentos de profissional.
Quando terminou, me estendeu a mão orgulhosamente, não como um pedinte, mas como um trabalhador exigindo o sálario pelo seu esforço. Entreguei cinquenta centavos com a sensação de ser mesquinha, sentindo-me quase como um patrão explorador e sem coração.
Em que sinal estarão eles hoje? Como será a vida deles? E o futuro?
Não tenho tempo de conjecturar respostas. O sinal, finalmente, está verde.
Verde para mim. Mas não sei se um dia abrirá para esses meninos de sinal, vivendo no infernal vermelho dos sinais fechados.


Amigo sol


Não sou londrina, mas tenho que admitir que "sunshine on my shoulders makes me happy" * , especialmente depois de vários dias tenebrosos de chuva. Quando o tempo está chuvoso por muitos dias eu me sinto murchando, como uma planta doente, buscando um pouco de luz e calor para voltar a florescer. Desculpem a depressão, mas já passou. Abri a janela ontem e o suave sol de setembro estava lá, acolhedor.
E eu soube, então, que sou um ser da luz, um animal de hábitos diurnos, mas com algo em comum com aqueles outros, que caçam à noite porém passam o dia esquentando a barriga ao sol. Em vez de caçar, prefiro dormir quando fica escuro, mas durante o dia, se pudesse, passaria o dia deitada de barriga para cima, aproveitando a energia solar para recarregar as minhas baterias internas, para fazer uma reserva para os dias de chuva.
Chuva só é boa para mim no verão, quando ela vem e passa. Chega súbita, escurece o dia, desaba furiosa e vai-se embora, deixando atrás de si a calma e o cheiro de terra molhada (cada vez mais raro, afinal, onde está a terra?). A bendita chuva de verão refresca o ar, nos alivia do calor. Mas como é bom aproveitar um dia claro de verão num parque, ir à praia, passar o dia com pouca roupa, bem à vontade. A gente parece mais vivo, mas intenso.
Tenho pena dos londrinos, dos noruegueses, dos canadenses, de todos aqueles que nasceram longe da linha do equador. É uma benção ter tantos dias de sol por ano, por vida.
Lembremo-nos disso quando nos abater o desânimo, o desespero. Acima das nuvens mais negras, está o sol, brilhando sempre. Mais cedo ou mais tarde ele vai vencê-las e sua luz nos alcançará. Por mais problemas que tenhamos, para nós, sempre haverá o sol.



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